segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Da arte de esquecer

Sou feita de esquecimentos, deve ser por isso que eu preciso dizer eu te amo todo dia. Sou feita de falta de memória, minha infância e adolescência são fragmentadas dentro de mim. Não lembro muito, sempre me sinto perdida nas conversas entre irmãos e primos.
Lembro de pequenos gestos, de algumas cores, de poucas pessoas e lugares.

Lembro de um moletom rosa que eu tinha e que eu estava vestida com ele quando saí com meu meu pai uma vez, eu devia ter uns cinco anos, nós estávamos passando em frente ao Corpo de Bombeiros da Praça da Sé, eu não lembro para onde íamos e de onde saímos, mas eu lembro do sorriso dele pra mim depois de eu ter falado alguma coisa boba. Deve ser por isso que eu gosto de sorrisos.

Eu sou feita de fragmentos de dias ruins. E por mais que eles tentem, nunca me dominam. Minha mãe estava com câncer, operou e quando chegou da cirurgia, estava dizendo meu nome. O enfermeiro contou que na hora que ela acordou da anestesia, ela acordou e me chamou. Já no quarto, cansada, chorou um pouco e dormiu enquanto eu cantava pra ela. Desde então, eu sempre canto quando estou triste. E a tristeza passa.

Eu sou feita das histórias que me contam. Meus três irmãos me contam as peripécias que aprontávamos e eu lembro de pouca coisa, junto o que cada um, com sua diferente visão me conta e crio minha própria lembrança. Talvez seja por isso que eu gosto de ouvir todos os lados de uma mesma história, só assim eu consigo  criar a minha.

Eu sou feita de dedos longos, braços compridos e tortos (sim, meu braço é torto, bem esquisito), sou feita de abraços. Lembro do dia que conheci meu marido, mas não lembro do dia que ele me deu o primeiro abraço, só sei que são nos braços dele que eu quase sempre fico bem, apesar de tudo. Deve ser por isso que eu acho um abraço muito mais íntimo que um beijo.

Eu sou feita de esquecer. Diariamente vivo coisas pela primeira vez. Deve ser por isso que eu preciso ouvir eu te amo todo dia.


***

Tenho amor, não tenho memória.
(Fabrício Carpinejar)

Um comentário:

Giselle Corrêa disse...

Bonito o texto, bem gostoso de ler. Quase pude presenciar teus sentimentos.
Bjs